quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Cocktail de Liberdade

Para fazer o cocktail de liberdade, devem usar-se vários ingredientes. Muitos ingredientes. Todos os ingredientes que for possível: morenos e louros, escuros e claros, olhos azuis, olhos rasgados, cegos e visionários, mulheres, homens, rapazes e rapazes, raparigas com raparigas, rapazes com rapazes... e tudo à vontade, desde que seja de boa vontade. Em seguida, junta-se-lhes um longo fio de tolerância e tiram-se-lhe os espinhos: o medo da diferença, a arrogância do forte, a mania de pensar os indivíduos como sendo feitos pelo e para o colectivo, em vez de considerar o colectivo como sendo feito pelos e para os indivíduos. Agita-se bem, mistura-se até que fique bem misturado, até que à superfície se formem as bolhas do respeito e os rebentos do amor. Pode juntar-se-lhe depois uma rameira, digo, um raminho de doce fragrância e já está. Toca a beber, que a vida são dois dias.

Fernando Savater, in Livre Mente
(2000)

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Vitorino Nemésio, sobre a 'açorianidade'

"Quisera poder enfeixar nesta página emotiva o essencial da minha consciência de ilhéu. Em primeiro lugar o apego à terra, este amor elementar que não conhece razões, mas impulsos; e logo o sentimento de uma herança étnica que se relaciona intimamente com a grandeza do mar.

Um espírito nada tradicionalista, mas humaníssimo nas suas contradições, com um temperamento e uma forma literária cépticos, - o basco espanhol Baroja, - escreveu um livro chamado Juventud, Egolatria 'O ter nascido junto do mar agrada-me, parece-me como um augúrio de liberdade e de câmbio'. Escreveu a verdade. E muito mais quando se nasce mais do que junto do mar, no próprio seio e infinitude do mar, como as medusas e os peixes...

Uma espécie de embriaguez do isolamento impregna a alma e os actos de todo o ilhéu, estrutura-lhe o espírito e procura uma fórmula quási religiosa de convívio com quem não teve a fortuna de nascer, como o logos, na água...

....Meio milénio de existência sobre tufos vulcânicos, por baixo de nuvens que são asas e bicharocos que são nuvens, é já uma carga respeitável de tempo - e o tempo é espírito em fieri ....

Como homens, estamos soldados historicamente ao povo de onde viemos e enraizados pelo habitat a uns montes de lava que soltam da própria entranha uma substância que nos penetra. A geografia, para nós, vale outro tanto como a história, e não é debalde que as nossas recordações escritas inserem uns cinquenta por cento de relatos de sismos e enchentes. Como as sereias temos uma dupla natureza: somos de carne e pedra. Os nossos ossos mergulham no mar.



Um dia, se me puder fechar nas minhas quatro paredes da Terceira, sem obrigações para com o mundo e com a vida civil já cumprida, tentarei um ensaio sobre a minha açorianidade subjacente que o desterro afina e exacerba."

(1932)

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Shakespeare - Soneto 116




Let me not to the marriage of true minds
Admit impediments, love is not love
Which alters when it alteration finds,
Or bends with the remover to remove.

O no, it is an ever-fixed mark
That looks on tempests and is never shaken;
It is the star to every wand'ring bark,
Whose worth's unknown, although his height be taken.

Love's not Time's fool, though rosy lips and cheeks
Within his bending sickle's compass come,
Love alters not with his brief hours and weeks,
But bears it out even to the edge of doom:

If this be error and upon me proved,
I never writ, nor no man ever loved.